abril 04, 2007

Reformas da educação, paradoxos e mistificações

A actual ministra da educação ganhou fama de corajosa reformista junto da comunicação social dita séria, em especial dos fazedores de opinião de pendor neoconservador e neoliberal, para quem tudo quanto mereça a oposição dos sindicatos dos professores só pode ser benéfico para a educação. Aliás o comentário político em Portugal cultiva a superficialidade estética, olhando mais para o estilo da intervenção e para as reacções que provoca do que para a substância, para os fundamentos e finalidades, para os quês e os porquês.
Não há como negar a necessidade de reformas. A escola tem que se organizar melhor para funcionar melhor, para enfrentar as dificuldades do insucesso educativo, para se adaptar e responder às transformações da sociedade, com os seus novos problemas e desafios.
É fácil dizer que as mudanças custam; as pessoas, os professores em especial, são resistentes às mudanças; as corporações colocam os seus interesses particulares acima do bem comum, dos interesses superiores da sociedade; as organizações, como as escolas, padecem de uma inércia endémica e duma capacidade de arruinar, subverter, ou dissipar todo o intento reformista. Apesar de tudo isso, se nos fosse dado ver em filme o quotidiano das crianças, dos jovens e das escolas de há 100 anos, de há 50 anos, de há 30, ou de há 10 anos atrás a funcionar nos diferentes espaços, salas de aula, biblioteca, ginásio, cantina, recreios, etc, por certo nos aperceberíamos de que muita coisa mudou, e de que em muitos aspectos mudou radicalmente.
Porém, nos nossos dias, mudar transformou-se magicamente num valor próprio, independentemente do sentido da mudança, dos seus pressupostos, fundamentos e finalidades. As propostas de mudança são proclamadas em nome da qualidade e qualificação, da eficiência e sucesso educativo, do profissionalismo, profissionalização e profissionalidade, da responsabilidade, do accountability, da autonomia, iniciativa, criatividade, do trabalho em equipa e de outros meritórios desígnios.
O primeiro paradoxo é que os conservadores por tradição avessos à mudança, defensores da tradição, apresentam-se hoje na linha da frente da mudança, batendo-se por uma nova ordem social, que passa em grande medida pela desacreditação da escola pública em favor de educação privada, subvencionada pelo estado, e de preferência tutelada por instituições ligadas à igreja. A ministra tem dado uma grande ajuda através de declarações de apoucamento das escolas e dos professores.
O segundo paradoxo diz respeito às declarações de amor e juras à prioridade da educação, à aposta na qualidade ao mesmo tempo que se reduz o orçamento da educação e das escolas, muito em especial no que diz respeito à remuneração dos professores, ao congelamento de carreiras, à precarização da contratação docente.
O terceiro paradoxo tem a ver com a proclamação da profissionalidade docente em contraste absoluto com a diminuição do espaço de decisão autónoma e de iniciativa dos professores, com a descaracterização da função docente, nomeadamente com aulas de substituição destituídas de propósito pedagógico, com a excessiva carga burocrática que se impõe aos professores, reuniões, planos, relatórios que servem mais as exigências de uma burocracia formal do que necessidades educativas. Há hoje zelosos conselhos executivos que inventam tarefas para que os professores nunca estejam desocupados quando não têm aulas; o trabalho de equipa é burocratizado, os projectos interdisciplinares são sujeitos a horários prefixados; hoje há sinais evidentes de um processo de desprofissionalização que começou com a subcontratação de mão-de obra barata para leccionar inglês e educação física no primeiro ciclo e com a introdução dos contratos individuais de trabalho.
Para além destes, outros paradoxos e mistificações existem, a maior das quais é aquela que em nome da racionalidade económica, da gestão eficiente dos recursos, quer fazer das pessoas peças programáveis, reprogramáveis e descartáveis, para usar e deitar fora, ao serviço dos superiores interesses da sacrossanta economia e da competitividade global.

Amândio Graça

4 comentários:

Miguel Pinto disse...

"O primeiro paradoxo é que os conservadores por tradição avessos à mudança, defensores da tradição, apresentam-se hoje na linha da frente da mudança..." é o efeito foto negativo, i.e., eu conservador pondo-me na crista da onda da mudança, tudo o que mudar é para ficar mais igual e conservado que antes, para além de que relego para canto, aqueles que têm a mania de pensar de forma progressista, acuso-os de serem conservacionistas do status quo que não quero mudar . Eis o efeito real deste paradoxo.
"O segundo paradoxo diz respeito às declarações de amor e juras à prioridade da educação,(...)" pois, mudança há concerteza, ama-se a contenção orçamental, anatemiza-se a sabedoria e anula-se a coragem de ensinar em condições tão amorosas, dando-se prioridade à avaliação externa, à creditação de competências e ao e-learning, transformando os professores, técnicos e agentes educativos em descartáveis pensos da higiene educativa neoliberal. Reutilizáveis? Não, substituíveis...
"O terceiro paradoxo tem a ver com a proclamação da profissionalidade docente em contraste absoluto com a diminuição do espaço de decisão autónoma e de iniciativa dos professores..." é o clássico faz e nem ouses pensar no que fazes porque estás a fazer o que te mandam, e assim é que os profissionais o são: Fazer e ter tanto e sempre que fazer para não haver espaço, tempo ou lugar a reflectir no que se faz, como se faz e porque se faz. Quem isto quiser fazer é um mau profissional cujo destino é o quadro da mobilidade normal ou especial e mesmo estes quadros não são de escolha possível porque determinados pelo chefe que, também ele bom profissional, cria de forma arbitrária desde que para real conveniência de serviço, um não satisfaz seja o desfecho para tamanha desfaçatez.
Pronto, temos o caldo criado para a competitividade por baixo, numa economia global que com estes condimentos tudo deita abaixo, mesmo o que é humano pois este, serve a economia e não o contrário como seria expectável.

Jorge Guimarães

PS: O Jorge deixou este comentário no meu blogue após a minha chamada de atenção para este texto.

henrique santos disse...

Ao ler o texto do Amândio que considero um texto de análise politica sobre a política (com P grande) da Educação, veio-me imediatamente à lembrança um dos nossos maiores da Educação Física, o saudoso Noronha Feio. Lembrei-me dum suu livro Desporto e Política. Ensaios para a sua compreensão. Fui reabri-lo. Não resisto a reproduzir aqui um excerto: "A política, como ciência e não como forma oportunista de exploração da ignorância dos povos, pede a todas as ciências a sua contribuição, informa-se delas, com elas, para estabelecer os seus princípios orientadores - as leis para o progresso da sociedade. Servindo a política, a ciência afasta-se essencialmente, ou opôe-se radicalmente, a uma concepção, bastante vulgarizada nos meios científicos, do apoliticismo científico, expressão metafísica do individualismo de sábios e investigadores subjectivamente condicionados pelo idealismo filosófico. Não existe ciência ou arte ou desporto independentes, ou isolados, das leis da governação ou do dinamismo das sociedades. A neutralidade é uma ficção metafísica."
Neste tempo em que os políticos tantas vezes nos fazem descrer da política - pois tantas vezes a mostram como um jogo baixo ao nível dos princípios ou algo que é terreno cativo de uns quantos perante o alheamento de quase todos, - facto extremamente perigoso para o vigor da democracia, há que afirmar e demonstrar a necessidade da intervenção cívica e crítica na análise e realização das políticas globais e sectoriais. Acho que este texto do Amândio é um bom exemplo disso mesmo.

Miguel Pinto disse...

Este texto [que eu gostava de ter escrito] explora algumas das irracionalidades das teses gerencialistas da gestão pública. Embora faça um esforço para me distanciar da influência das ideias de Nils Brunsson expressas num livrinho que vou lendo pausadamente - “A Organização da Hipocrisia” – vejo aqui, como lá, um apelo à “politização” das organizações na medida em que as organizações mais políticas fornecem melhores hipóteses de sobrevivência da organização face às agressões e incongruências do ambiente institucional. Não consigo pensar numa organização como a escola que tem de lutar pela sua sobrevivência [e quando me refiro à escola estou a pensar na escola personalista], com os seus actores arredados da arena política.

«« disse...

o problema é como disse e bem, é que há outros paradoxos. Hoje em dia o ministério da educação, transformou-se claramente no ministerio da instrução, colocando a causa instrutivaa à frente da causa dos valores de forma desproporcional, enfim o problema é que os resultados deste assassinio da escola vai aparecer daqui a uns anos e lá estarão os abutres para acusarem so professores de boicote a tão belas medidas para a instrução